A vídeo chamada não nos libertou. Mas a solidariedade pode fortalecer a fronteira fragilizada entre nossa casa e o local de trabalho.

As milhares de pessoas que tiveram como opção trabalhar de forma remota ou híbrida durante a pandemia estão acordando para o fato de que o trabalho por vídeo conferência não é tudo o que foi prometido. Em vez de serem libertados de um volume enorme de trabalho desnecessário, as demandas para o seu tempo aumentaram e eles se sentem em plantão permanente e alguns não conseguem se livrar da sensação de trabalhar mais do que nunca por menos salário.

Essas pessoas experimentam agora uma lição que seus antecessores nesse modelo de trabalho aprenderam da maneira mais difícil: o tempo que você economiza de forma remota gera um aumento na expectativas para que essas lacunas sejam preenchidas. As pessoas que trabalhavam cuidando da família, em casa, sentiam isso de forma mais aguda: se a máquina de lavar economizava horas na lavagem das roupas, você tinha que usar esse tempo com outras demonstrações de devoção à família. Com o trabalho remoto não é diferente: a hora que você economiza numa atividade não paga como o trânsito, agora é uma hora que pode ser preenchida com uma reunião inútil.

Um pouco de resistência é necessária, porque nos últimos três anos a grande maioria dos trabalhadores tratou o trabalho remoto como um bem necessário para o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. Os gestores e líderes de empresas que lamentaram aos céus sobre como o trabalho remoto certamente acabaria com o comprometimento e disciplina de suas equipes, nada fizeram para mudar essa impressão quando se deram conta que esse modelo é uma ótima ferramenta para extrair mais de seu time. Pelo ponto de vista capitalista, de extrair cada vez mais resultado sem aumentar a despesa, tivemos uma grande revolução (mesmo que não planejada). A resistência se faz cada vez mais necessária, pois se não tomarmos cuidado, a tecnologia que torna isso possível destruirá definitivamente a fronteira, já fragilizada, que separa nosso lar de nosso local de trabalho.

A pandemia revelou que muito trabalho, especialmente os executados em escritórios, poderia ser feito remotamente. Ou, pelo menos, exigia menos tempo no local como fomos levados a acreditar. Já para os funcionários com deficiência, essa foi uma revelação especialmente poderosa! Diante de tantos trabalhos negados devido à sua impossibilidade de estar presente de forma constante em um escritório, de repente eles se tornaram participantes de um experimento global que mostrou que quase todo mundo poderia fazer o trabalho muito bem de forma remota. Flexibilidade, controle, conforto do lar, mais capacidade de equilibrar as necessidades pessoais, familiares e profissionais, possibilidade de não ficar parado horas no trânsito dentro de um ônibus, metrô ou seu próprio veículo numa via congestionada. O trabalho remoto traz benefícios para todos.

Mas esses benefícios estão diminuindo. Temas que deveriam ser resolvidos por email estão se transformando em chamadas intermináveis de vídeos. Conheço uma pessoa que foi chamada para uma sessão de preparação técnica gratuita de uma hora para dar uma palestra remota como convidado (anteriormente, isso exigiria apenas 10 minutos antes de sua aparição). As normas emergentes de uma vídeo chamada exigem que você fique sentado o tempo todo, anulando o benefício de estar perto o suficiente da cozinha, ou de uma cafeteria, e seguir a reunião lá.

Mas pode ficar ainda pior! Existem softwares que possuem inteligência artificial para detecção facial. Isso significa que é possível rastrear os globos oculares. Na prática, ao deixar sua câmera ligada o software consegue monitorar sua atenção e onde está seu foco. Essas informações podem ser utilizadas pra diversas análises e finalidades. Outro software permite monitorar as atividades em seu navegador e produz relatórios para os gestores sobre o tempo gasto em redes sociais, serviços de streaming, pesquisas e até busca por emprego.

Embora existam muitos executivos resistentes ao esforço de normalizar o trabalho remoto, é importante lembrar que, se perderem essa batalha, inevitavelmente recorrerão à esses softwares de vigilância e de suas versões melhoradas para recuperar o poder que acham que estão perdendo.

“Temos que parar de acreditar que a tecnologia, por si só, nos emancipará e, em vez disso, acreditar e apostar em nosso poder coletivo de moldar como a tecnologia é usada. Isso requer organização.”

A pandemia e o trabalho remoto turbinaram o tecnoconsumismo, nos deixando a impressão que as ferramentas de vídeo chamada sozinhas poderiam nos permitir recuperar tudo o que as demandas cada vez mais duras de um escritório estavam roubando de nós. Infelizmente, superar o capitalismo requer muito mais que soluções tecnológicas oferecidas por influencers com carros importados e milhões de seguidores. Temos que parar de acreditar que a tecnologia, por si só, nos emancipará e, em vez disso, acreditar e apostar em nosso poder coletivo de moldar como a tecnologia é usada. Isso requer organização.

Trabalhadores remotos e híbridos podem começar garantindo que, ao se estabelecerem em uma nova cidade ou país, não tragam consigo problemas sociais. As cidades ao redor do mundo já estão sofrendo sob o peso do autodenominados “nômades digitais” migrando com seus laptops e salários de seis dígitos para economias de baixa renda, provando que é possível globalizar a gentrificação (processo de transformação das paisagens urbanas em determinados bairros da cidade que garante novas funções aos edifícios e espaços urbanos , o que atrai um novo perfil de moradores e provoca alteração no custo de vida nessas áreas, tornando-o mais elevado). Esse não era um experimento sociológico que precisávamos conduzir após uma pandemia mortal que rasgou a alma de todas as sociedades. Em vez disso, seja um membro responsável da comunidade. Não apoie proprietários exploradores ou superhosts do Airbnb. Conheça seus vizinhos, aprimore o idioma e use seu dinheiro extra para ajudar empresas locais e moradores da comunidade. Não seja alguém que se preocupa apenas em usar a exótica paisagem desses lugares (onde resolveu ser um nômade digital) como uma paisagem de fundo para o Zoom, Teams ou Google Meet.

Quem trabalha em casa em sua própria cidade também pode ajudar a pressionar e moldar sua comunidade de maneira que atendar bem todos os seus membros. Hoje, as rotas de transportes públicos são projetadas para atender uma demanda de pessoas que vão da periferia ao centro e do centro à periferia entre 7h e 18h. Com o advento do trabalho remoto, temos uma oportunidade de redesenhar esse sistema e atender uma necessidade antiga de quem vive uma vida inteira nessa comunidade: oferecer rotas laterais, circulares e entre bairros, que permitam a viagem rápida entre as periferias, sem a necessidade de ir até o centro da cidade para depois se deslocar à outro ponto da periferia. Isso requer organização e vontade de apoiar as necessidades locais.

Certamente, a melhor forma de garantir o direito de trabalhar de forma remota, ou híbrida, e formar uma base para uma organização política com capacidade de remodelar a nossa comunidade, é se organizar como um sindicato. Também garantirá que você e seus colegas mantenham os benefícios do trabalho remoto e formem um alicerce contra o próximo passo lógico que seus empregadores darão se concordarem com o rumo que o trabalho remoto aponta hoje: demolir os últimos vestígios remanescentes dessa parede que separa o trabalho e o lar.

Assim, como funcionário remoto, essa é a compensação que você deve fazer. Em vez de não passar horas de sua vida se deslocando e vestindo sua calça de pijama confortável enquanto aparece elegantemente na vídeo chamada, seus chefes acreditam que tem o direito de uma visão mais intrusiva em sua vida privada. Se quiser transformar sua sala num escritório, então ela será tratada como um escritório, um local controlado pela empresa, sujeito a vigilância sempre que os seus superiores assim o desejarem.

Você precisa parar isso. E não vai conseguir sozinho.

* Texto de autoria de Katherine Alejandra Cross, para o portal portal WIRED. Traduzido por I9ATI.